Introdução
A detecção de arritmias cardíacas em pacientes com eventos intermitentes representa um desafio significativo na prática clínica. Nesses casos, o eletrocardiograma (ECG) de repouso, uma ferramenta fundamental, tem sua eficácia limitada. É aqui que o monitoramento cardíaco prolongado se torna indispensável. Este inclui dispositivos como o Holter, monitores de eventos, sensores vestíveis e, em situações específicas, loop recorders implantáveis, todos projetados para correlacionar os sintomas dos pacientes com seu ritmo cardíaco.
Em populações especiais, como a pediátrica, por exemplo, as palpitações são uma causa comum de encaminhamento ao cardiologista, frequentemente culminando na indicação de monitoramento ambulatorial [1]. De forma análoga, em idosos, arritmias supraventriculares, como a fibrilação atrial (FA), apresentam uma alta prevalência. Nesses grupos, o monitoramento estendido é crucial em cenários de síncope inexplicada e acidente vascular cerebral (AVC) criptogênico, considerando que muitos episódios de arritmia podem ser assintomáticos. Compreender as diversas modalidades de monitoramento prolongado e suas aplicações específicas em diferentes faixas etárias é, portanto, de extrema importância.
Monitoramento Cardíaco Prolongado: Uma Visão Geral
O monitoramento prolongado abrange uma gama de dispositivos, cada um com durações de gravação distintas:
- Holter tradicional (24–48 horas): Avalia continuamente o ritmo cardíaco por um ou dois dias, sendo frequentemente a primeira linha de investigação para suspeitas iniciais.
- Monitores de eventos ou “loop recorders” externos (2–30 dias): Registram o ritmo cardíaco por períodos mais longos. Podem ser ativados pelo paciente ao sentir sintomas ou capturar arritmias automaticamente.
- Monitores de adesivo (patch) vestíveis (até 14–30 dias): Oferecem maior conforto e uma duração estendida (ex.: Zio Patch), sendo vantajosos tanto para adultos quanto para crianças.
- Loop recorder implantável (até 2–3 anos): Um dispositivo subcutâneo empregado em casos selecionados (ex.: síncopes recorrentes ou AVC criptogênico), com alta sensibilidade para detectar FA de baixa carga e outras arritmias paroxísticas.
- Dispositivos móveis (smartwatches, aplicativos de ECG): Permitem o monitoramento sob demanda, sendo particularmente úteis em arritmias de alto risco (como a FA) e em rastreamentos populacionais.
A diversidade dessas ferramentas aumenta significativamente as chances de um diagnóstico preciso. Estudos demonstram que a inclusão de monitores vestíveis ou implantáveis eleva a detecção de FA em comparação com o ECG de curta duração em pacientes de risco. Por exemplo, um ensaio europeu recente revelou que o monitoramento contínuo por um mês identificou FA em 10–16% dos pacientes com AVC criptogênico, em contraste com apenas 3% pelo método convencional. A escolha do método mais adequado, portanto, depende de fatores clínicos como a duração esperada das arritmias, a tolerabilidade do paciente, o custo e o perfil de risco individual. As diretrizes atuais enfatizam que dispositivos implantáveis e vestíveis complementam o Holter, especialmente em casos de sintomas infrequentes ou suspeita de arritmia silenciosa (FA), maximizando o rendimento diagnóstico.
Aplicações em Pediatria
No cenário pediátrico, as principais indicações para o monitoramento cardíaco prolongado são palpitações, síncope e alterações eletrocardiográficas inexplicadas. Um estudo de corte com 189 crianças submetidas ao Holter revelou que os motivos mais frequentes para o exame eram ECG anormal e palpitações (30,7% cada), seguidos por síncope (12,7%) e dor torácica (6,9%). Pacientes com cardiopatia congênita (pré ou pós-intervenção) representaram 9% do total [2]. Isso sugere que o monitoramento prolongado é frequentemente indicado após achados iniciais duvidosos ou sintomas sugestivos que são infrequentes.
As arritmias detectadas em crianças diferem das encontradas em adultos. No estudo mencionado, aproximadamente 13% das crianças monitoradas por palpitações receberam um diagnóstico de arritmia relevante [1]. A grande maioria desses casos positivos (cerca de 78%) consistia em taquiarritmias supraventriculares, sendo a taquicardia supraventricular não sustentada a mais comum (~60%), seguida pela taquicardia supraventricular sustentada (~18%). As taquicardias ventriculares não sustentadas representaram cerca de 19% das arritmias detectadas, enquanto episódios de fibrilação atrial foram extremamente raros (~2,8% das arritmias, correspondendo a apenas 9 casos ou 0,4% de todos os pacientes) [1].
Esses números indicam que, embora a maioria das crianças monitoradas não apresente arritmia (cerca de 87% tiveram apenas ritmos normais) [1], o monitoramento estendido é vital para capturar as taquiarritmias mais prováveis nesse grupo. O Holter, ademais, é capaz de diferenciar eventos benignos (como extrassístoles isoladas) de arritmias que exigem intervenção terapêutica. Ele também auxilia no acompanhamento de crianças com cardiomiopatias ou arritmias já conhecidas (por exemplo, síndrome de Wolff-Parkinson-White), orientando a necessidade de intervenção. Em suma, o monitoramento prolongado em pediatria complementa a avaliação clínica, aumentando a segurança diagnóstica quando os sintomas não se manifestam durante a consulta.
Aplicações em Idosos
Em pacientes idosos, o monitoramento prolongado concentra-se principalmente na detecção de arritmias associadas a eventos isquêmicos e síncopes, bem como na identificação da fibrilação atrial subclínica. Nessa faixa etária, a FA é altamente prevalente, afetando cerca de 10% dos indivíduos com mais de 80 anos [3]. Essa alta incidência justifica o uso de monitores estendidos para rastreamento, particularmente após um AVC ou em triagens de alto risco. Monitores implantáveis em sobreviventes de AVC criptogênico, por exemplo, diagnosticam FA em até 30% dos casos em três anos, uma taxa muito superior àquela obtida por ECG de curta duração [3]. O monitoramento também é empregado em idosos com síncopes recorrentes ou quedas inexplicadas, buscando bradiarritmias ou taquiarritmias adquiridas.
Além dos dispositivos tradicionais (Holter, monitor de eventos), a população idosa tem adotado tecnologias móveis. Relógios inteligentes com algoritmos de ECG e dispositivos vestíveis com monitores fotopletismográficos são cada vez mais utilizados para triagem de FA. Estudos clínicos, como o Apple Heart Study, demonstraram que, em adultos com mais de 65 anos, a detecção de FA incidente foi de aproximadamente 3,0% [4]. De forma geral, o monitoramento prolongado em idosos visa prevenir eventos tromboembólicos e quedas de origem arrítmica. Sua aplicação tem crescido à medida que evidências dos benefícios da anticoagulação direcionada a arritmias silenciosas se acumulam. Alguns autores recomendam, inclusive, o uso de loop recorder em idosos com alto fator de risco, mesmo sem sintomas, para prevenir futuros AVCs.
Desafios e Considerações Específicas
O monitoramento cardíaco prolongado em pediatria e geriatria apresenta desafios e considerações distintas:
- Adesão e conforto: Crianças pequenas podem sentir desconforto com os eletrodos, enquanto idosos, com pele mais frágil, têm maior risco de reações cutâneas aos adesivos do Holter. Adicionalmente, pacientes pediátricos (especialmente pré-escolares) e idosos com déficits cognitivos podem ter dificuldade em cooperar com monitores externos, exigindo supervisão.
- Interpretação do resultado: Os ritmos cardíacos normais variam com a idade. Em crianças, extrassístoles isoladas ou pausas benignas podem ocorrer e devem ser cuidadosamente diferenciadas de arritmias patológicas. Em idosos, bloqueios atrioventriculares de grau variável podem exigir uma correlação clínica minuciosa. A alta taxa de resultados normais em pediatria (cerca de 87% sem arritmia relevante) [1] sugere que muitos exames não alteram a conduta, reforçando a necessidade de uma indicação criteriosa.
- Tecnologia e segurança: Dispositivos vestíveis e aplicativos introduzem desafios relacionados à privacidade e à dependência tecnológica. É fundamental garantir a segurança dos dados e a calibração adequada dos aparelhos para adultos e crianças. Em idosos, a capacidade de operar monitores acionados por botão pode ser limitada, diminuindo a efetividade desse tipo de monitor.
- Custos e logística: A repetição de exames com baixo rendimento diagnóstico pode elevar os custos sem um benefício claro. Na pediatria, dispositivos de uso único (como patches) podem ter um custo elevado. Em geriatria, o implante de loop recorders envolve procedimentos cirúrgicos e a análise de dados a longo prazo. Os profissionais devem realizar uma avaliação personalizada do custo-benefício, priorizando o monitoramento estendido apenas quando houver indicação de uma alteração terapêutica significativa.
Conclusão
O monitoramento cardíaco prolongado oferece ferramentas inestimáveis para o diagnóstico de arritmias em populações especiais. Em pediatria, ele auxilia no esclarecimento de sintomas inespecíficos (palpitações, síncopes) e na detecção de taquiarritmias raras. Já em idosos, o foco principal é a identificação de fibrilação atrial oculta e distúrbios de condução que elevam o risco cardiovascular. A literatura recente indica que apenas cerca de 13% das crianças com palpitações têm arritmia confirmada por monitores prolongados [1], o que destaca que a maioria dos resultados é normal e reforça a importância de uma seleção cuidadosa dos pacientes para o teste.
Em todas as idades, a harmonização entre a tecnologia de monitoramento e as características do paciente (idade, cooperação, indicação clínica) é fundamental para otimizar o rendimento diagnóstico. Novos recursos, como dispositivos móveis e a aplicação da inteligência artificial na análise de sinais, prometem elevar ainda mais a acurácia. Para cardiologistas e arritmologistas, a compreensão aprofundada dessas ferramentas e suas limitações específicas em pediatria e geriatria é essencial para tomar decisões clínicas mais seguras e eficazes.
Referências Bibliográficas
- Goto L, Witkowska O, Slusarczyk ME, Grotek AM, Dziubiński MJ, Clark BC. Diagnostic yield of ambulatory cardiac monitoring in pediatric patients with palpitations. Ann Pediatr Cardiol. 2023;16(2):109–113. DOI:10.4103/apc.apc_107_22. Disponível em: www.ncbi.nlm.nih.gov
- Alotaibi A, Alakhfash GA, Alakhfash AA, Mahmoud T, Alakhfash AA, Qwaee AA, Mesned A. The Value of Continuous Electrocardiographic Monitoring in Pediatric Cardiology: A Local Center Experience. Cureus. 2022 Jun 5;14(6):e25667. DOI:10.7759/cureus.25667. Disponível em: www.ncbi.nlm.nih.gov
- Apple. Pesquisadores usam o Apple Watch para explorar novas fronteiras na saúde cardíaca. 2023. Disponível em: www.apple.com
- Perez, M. V., et al. Large-Scale Assessment of a Smartwatch-Based Pulse Rate Algorithm for the Detection of Atrial Fibrillation. N Engl J Med. 2019 Nov 14;381(19):1909-1917. DOI: 10.1056/NEJMoa1901183. (Dados específicos para incident AF em >65 anos frequentemente são derivados de análises secundárias ou de subgrupos dentro de estudos maiores, como foi reportado em discussões subsequentes ao artigo principal do Apple Heart Study, por exemplo, em conferências ou em JAMA Cardiology.)